Pensei hoje na idéia de divulgar o que escrevo. Isso significa encontrar leitores. Para pensar em criar um leitor, devo imaginar que ele não existe, se eu me ativer ao sentido mais primitivo e original de “criar”. Há outra ideia: a de amamentar, que, por derivação de sentido, deu-nos a idéia de educar, instruir, como se pensa quando se quer falar de criar filhos, por exemplo. Acho que, no caso de um escritor diante de virtuais leitores, tanto uma acepção quanto outra são pensáveis. Como criar leitores, tanto num sentido quanto no outro?
A palavra “poesia”, na sua origem grega, significa “criação”. Tentando transportar o sentido, posso pensar, então, que, para conceber um leitor, dar-lhe forma e sopro de vida, o gesto poético da criação, algo divino, é algo que se encaixa idealmente numa proposta ao escritor. Sim, todo escritor, mesmo que componha algo que ele não pense ser poesia, deve ser, na essência, um poeta. E esse ser da criação deve ser também quem conceba, ao produzir seus escritos, o leitor que os lerá.
Cada escrito tem, sem dúvida, ao menos um leitor a ele apropriado. E quanto a educar? Pensemos na idéia de alteração necessária surgida pela própria transformação do leitor. Ele foi gerado, desenvolveu-se e virou outro ser. Necessário criá-lo como a um filho, instruí-lo, educá-lo para novas aventuras literárias.
De fato, o encontro entre os escritos e os leitores não é nenhum pouco fácil. Às vezes, frustra-me saber que não tenho leitor nenhum, exceto minha própria pessoa. É pouco gratificante saber que até quem está muito próximo de mim – minha esposa, minha filha – nem me pergunta sobre o que escrevo, nunca pede para ler nada que sai de minha fantasia. A pergunta “Será que não terei leitor algum?” já deve ter ocorrido a quantos se dispuseram a escrever alguma coisa.
Ouvi hoje numa emissora de rádio que falava da Bienal do Livro em São Paulo e entrevistava um escritor que divulgou seu livro de poemas de uma maneira insólita: em embalagens de preservativos. Quando eu ouvi a primeira vez, apurei o ouvido para ver se estava sintonizando direito o que ouvia. Sim, o autor associou poesia com camisa-de-vênus!
Talvez ele estivesse fazendo algo bastante literal com o sentido de criar que vem da poesia. Nada mais sugestivo de um ato poético, pura criação, do que propor o ato sexual, não é mesmo? Mas, ao que eu saiba, a camisa-de-vênus serve, entre outras funções, para evitar a criação. O insólito da veiculação algo oportunista, em termos de geração de mercado leitor, soou a mim, então, como uma incrível contradição: divulgar criação na embalagem que evita a criação.
O difícil trabalho de angariar leitores faz também lembrar uma analogia bastante cruel que se encontra no livro “Angústia” (nome sugestivo!) de Graciliano Ramos, quando ele diz que os livros que escrevia a personagem central, talvez um alter ego do próprio Graciliano, eram, na vitrine, como prostitutas que se exibiam à espera dos leitores.
Osman Lins, em um livro muito pessimista, intitulado sugestivamente “Problemas inculturais brasileiros”, que tinha como subtítulo “Do ideal e da glória”, tratou, em um capítulo, da busca muito desalentadora de um escritor por leitores. Ele asseverava que a glória de um escritor era simplesmente ser lido. Vender não é importante, o importante é ter algum reconhecimento. O autor que veicula seus poemas por meio de embalagens de preservativos também disse isso na entrevista à emissora de rádio, ao revelar que não obteve nenhum lucro com a iniciativa, a qual foi financiada pelos próprios recursos do autor, mas obteve algo muito mais interessante: o reconhecimento de leitores. Isso já era suficiente para ele, tornava-o feliz, pela realização que foi ser lido.
Se para encontrar leitores, é preciso invadir-lhes a intimidade, segui recentemente a receita por meio da iniciativa de encaminhar um poema a todos os meus correspondentes da Internet, aqueles que me enviam e de mim recebem e-mails. Encaminhei-lhes um texto que era uma saudação em forma de abraço poético. Eis o texto:
ABRAÇAR
Quando alguma coisa agrada, deveria valer um abraço.
Um abraço a gente guarda como algo precioso, de inteira vontade, amplo, imenso.
A solidariedade deveria simbolizar-se por um abraço.
O espaço de um abraço é o de um nó, os laços unindo corpos em amizade.
Abraçar é manifestar simpatia, sofrer com o outro, viver a dor alheia.
Ofereço a você, pelo tempo que me lê, o meu mais forte abraço.
Só lhe peço que o retribua, abraçando-me com sua leitura.
O poema-abraço será construído pelos nossos nós, texto criado e recriado.
Aprendi algo com um poeta: nunca mande um abraço se você está diante de alguém, abrace-o!
Meu poema, então, faz-se um abraço, porque, ao lê-lo, você o tem perto.
Os braços das palavras encontrem o corpo de sua interpretação!
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Recebi alguns retornos, que me indicaram inequivocamente que o poema foi lido. Fiquei realizado com o fato de que pude criar, com meu poema-abraço, leitores, nos dois sentidos que pensei para o termo. Talvez tenha sentido o mesmo que Michelangelo Buonarroti sentiu ao ver seu Moisésquase humano e, segundo a lenda, ter batido na estátua com um instrumento e sugerido a ela que falasse. Ou talvez como um mais anônimo ser humano diante da notícia de que um ato de amor iria gerar, dali a alguns meses, um outro ser humano. Foi gerado um leitor, estava eu amamentando um ser em formação, eu era, naquele momento, um escritor.
Há quem diga, como José Saramago, que todos somos escritores. Essa generalização não me soa banal, porque, como a geração de um filho, criar pode ocorrer a todos em todos os instantes, mas é sempre algo mágico. E poder saber que houve ao menos um leitor que sintonizou com meu estado de gestação, com meu gesto poético, infinito, com aquele estado de verdadeiro amor que é criar, ah, essa é uma das raras felicidades, ainda mais num país de tão poucos leitores habituais como é o nosso.